Cadernos de Haidian, 10 de Julho de 2013

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Olho-me ao espelho e percebo que desconheço a feição, nunca fui eu. Terei mudado? Terei mudado tanto ao ponto de não ser mais eu, absolutamente? Durante este ano pensei em mim mais do que em qualquer outro momento da vida, isolado, Pequim foi a minha Tarrafal, encontrei aqui respostas às minhas in-quietações. Do meu quarto, todas as noites eu surfava, sentia a pulsação do mundo com um estetoscópio vivo, tentáculos parte de mim, com uma banda sonora que evocava o prazer do outrora, rap-rockjazz-blues!

Passeios entre as árvores, rente ao “Lago-sem-nome”, a torre no fundo com os meus dedos sobre ela, o calor que se fundia ao cheiro da grama e terra, os génios chineses (que afinal não são tão baixos nem tão parecidos assim) … as pernas nuas, finas e amarelas das estudantes, repugnantes para o meu amigo ganense, homem de fé inflexível que acreditava na minha relação especial com o criador. Que pena é deixar Pequim, essa Pequim remota, essa Pequim sem lua nem endereços fáceis. Tudo isso é um estúpido engano.

Amei Pequim e as suas paixões, a minha fragilidade faz-me recordar promessas e risos, fomes saciadas com goles de vinhos e papas de aveia. Cantos da terra com suas minuciosidades – amigos com características diferentes – com terror pelos filmes de terror e fascínio pela estranheza e linguajar, como quaisquer humanos.

– O que é ser poeta quando nos é tirada a voz? Deverá ter, o poeta, uma voz? Ou ser dono dela? Gosto do tambor, da sua força e da sua brutalidade, nem o rio a flor ou a azagaia, o tambor é apócrifo, mudo de face e livre de pele curtida. Um abraço, Craveirinha, da China, um aperto de mão afoito, Torga, de Pequim, será essa uma natureza humana, cantar os seus dias, senão digna de heróis lendários? Epopeicos? Já cá me aborreço, quem para julgar essa minha in-tentativa proustiana?

Adeus, Haidian!

Pequim, Haidian, 10 de Julho de 2013